As diversas opressões as quais grupos os minoritários sofrem em território brasileiro colocam em questionamento a ideia de liberdade nesse país. A noção de liberdade é umas daquelas questões das quais não existe um consenso, e apesar disso a sociedade, de modo geral, tende a acreditar e reproduzir a narrativa de que somos todos livres e que o Estado assegura esse direito; seguindo essa ideia, onde se vigora a noção de universalização da liberdade, de modo prático se todos são livres há, portanto, uma presunção de igualdade e, ainda, ao entender que somos iguais e livres qual seria a justificativa para que a liberdade seja usada como ferramenta de poder? – poder esse que sobrepõem liberdades alheias. O porquê do questionamento é factual, uma vez que ao analisar a conjuntura do Brasil de 2019 percebesse que caminhamos de forma análoga à uma realidade distópica como, por exemplo, a que fora apresentada no livro “1984” de autoria do pseudônimo George Orwell.
Nesse cenário controverso da conjuntura nacional uma maioria de governantes e seus eleitores, que se reconhecem dentro o espectro político da chamada “direita brasileira”, afirmam veementemente ideais fundamentados em práticas liberais e, contraditoriamente, conservadoras: o paradigma da defesa da liberdade individual e simultaneamente o apoio e difusão da censura observado nos últimos anos, que são promovidos por esses mesmos indivíduos, sustentam a incoerência e “ambiguidade seletiva” dessa conjuntura. Podemos exemplificar de forma sucinta o noticiado caso da exposição “QueerMuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” que foi censurado cancelado por um descontentamento do grupo dominante em relação às obras e suas respectivas expressões e impressões artísticas; outro caso, mais recente, é de autoria do atual prefeito do Rio de Janeiro que ordenou o recolhimento de livros de heróis, na Bienal do Livro em São Paulo, na “razão” de que continham a ilustração de um beijo homoafetivo, o que segundo ele expõem crianças a um conteúdo sexual. Aqui a subversão de qualquer noção de liberdade é claramente proposta para atender os interesses ideológicos desse grupo dominante. A arquétipo de “duplipensamento” cunhado por Orwell em “1984” se estabeleceu no inconsciente coletivo de grande parcela dos brasileiros:
“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”. (GEORGE ORWELL, no livro 1984.)
Ainda, é imprescindível explicitar que para além da perca intelectual, a sustentação do modus operandi da sociedade brasileira é estabelecida a partir de percas humanas. A motivação é clara: para que o grupo privilegiado perpetue seu poder se faz necessário uma sistematização de ferramentas de dominação que, subsidiado pelo processo de formação histórica do país, resulta no que entendemos como racismo. Em conjunto com esse sistema de poder temos uma série de outros aplicados de forma simultânea e, também, sistemática para consolidar a manutenção do status quo. Exemplos claros do que fora afirmado são: o machismo e a misoginia, a homotransfóbia e a intolerância religiosa (principalmente àquelas de matriz africana)… É difícil separar e delimitar essas opressões de forma isolada, uma vez que a aplicação delas é interseccional, ou seja, funcionam de forma interligada e com muitos aspectos em comum. O repúdio a religiões que fogem do dogma cristão, com raízes no nosso processo de colonização, infere diretamente a uma potencialização dessa opressão quando se adiciona a questão racial e de gênero, como podemos verificar nos infográficos levantados pela Gênero e Número e pelo DataLabe com base em dados fornecidos pelo governo:
Podemos demostrar a ideia de analisar e compreender as opressões a partir, então, do conceito de interseccionalidade e aplicar ao contexto brasileiro exemplificando o assassinato de Marielle Franco ocorrido em março de 2018:
“A intersecionalidade é uma ferramenta analítica que favorece a percepção dos margeamentose sobreposições de situações de opressão, por conta da condição humana quanto ao gênero, cor, classe social e orientação sexual, discriminadas na sociedade sexista, racista e classista. Marielle teve uma experiência intersecional e militava de forma integral, como mulher, negra, pobre e com uma relação homoafetiva.” (TEIXEIRA, Sérgio Henrique. Pensando a intersecionalidade a partir da vida e morte de Marielle Franco. Dignidade Re – Vista , v. 4, n 7, julho 2019)
Essa lógica de poder se estruturou de tal forma que os próprios indivíduos, vítimas, desse processo opressivo involuntariamente reproduzem comportamentos que corroboram com a ordem social estabelecida. Em meio a toda essa discussão, a “liberdade” se esvai e se torna sinônimo de imposição, de ditadura. Talvez o mais próximo que possamos chegar da idealizada liberdade só dê à partir desconstrução das amarras mentais impostas desde o momento em que houve a concepção de cada indivíduo.
Se o que sustenta o modus operandi são mecanismos interrelacionados, pensar numa ruptura social que redefina a lógica de funcionamento da sociedade e de suas instituições já organizadas só é possível através, também, de um pensamento que correlacione todas essas opressões: pensar a interseccionalidade se torna indispensável. O papel da educação crítica promovido pelos campos sociológicos e filosóficos são meios para este fim; não obstante grande parcela dos governantes hoje fomentam o sucateamento desses campos do saber, a questão é clara: a liberdade desencadeada por esses meios abala a estrutura social estabelecida, uma vez que as pessoas se organizam, reivindicam e lutam pelo que acreditam e, logo, para a elite dominante não há maior perigo do quê permitir que a população perceba criticamente às problemáticas relacionadas a forma como são regidas às estruturas sociais.